Literatura

#Clarice-se: Cem Anos de Perdão

Um pouco sobre o conto:
Duas meninas brincam nos arredores ricos de Recife, um local onde as casas são maiores, mais belas e cercadas por jardins verdes e prósperos. A história inicia quando uma das crianças decide roubar uma rosa de um jardim proibido, tendo total cuidado para não ser flagrada e nem percebida. Ao longo da narração, que tem como foco 1º pessoa, através do olhar da pequena “ladra” sabemos que os roubos não ficaram apenas em rosas, mas também se estenderam para as pitangas caídas ao chão dentro de um cercado. E para a garota está tudo bem, pois no futuro há um perdão para ela.


Embora o conto possa aparentar ser apenas a história de uma criança que começa a cometer furtos, seu significado vai além disso. É com muita maestria que Clarice Lispector, através das entrelinhas e para as percepções mais atentas, encaixa temas como sexualidade e perda da inocência. Ao lermos o conto com outros olhos, pensando sobre a sexualidade aflorada e o primeiro contato com a mesma e sobre o momento em que a inocência se perde, percebemos o quanto profundo e realista um texto pode ser, mesmo que indiscretamente.


Para aqueles que não fisgaram esses pequenos indícios de referências durante a leitura, indico que leiam essa análise, do site Passei Web, e releiam o conto com uma atenção redobrada e com um olhar mais crítico em cima das palavras. Eu fiz dessa maneira e consegui ter uma experiência de leitura ainda mais agradável e reveladora na segunda vez.

Quem nunca roubou não vai me entender. E quem nunca roubou rosas, então é que jamais poderá me entender. Eu, em pequena, roubava rosas.”


O que extrai da história:
À princípio não enxerguei a sexualidade explicita no conto. Só a entendi depois de ler a análise e perceber que certos termos realmente remetiam a descoberta da sexualidade pela parte da narradora. As palavras cuidadosamente escolhidas pela autora, os termos e frases que remetiam a primeira vez que descobriu a sexualidade, seja com um parceiro ou sozinha, só fizeram sentido para mim após uma segunda leitura, agora dando mais atenção aos detalhes e ao que havia lido na análise. Realmente a sexualidade está presente no conto e a maneira que a autora impõe isso é maravilhoso. Como sempre a Clarice conseguiu tratar de assuntos tabus, muitas vezes polêmicos quando tratam-se da vida particular e pessoal da mulher, de um jeito único e que traz reflexões.


Quanto a perda de inocência, acredito que captei de uma forma mais simples durante a primeira leitura, não tendo visto tanta profundidade à primeira vista. Eu vi a inocência se desmanchando quando a menina soube o que era roubar. Quando ela sentiu o prazer de tirar algo do seu habitat e torná-lo algo totalmente seu, sua propriedade, o segredo que dividia apenas com a amiga. Para mim, isso foi a questão da perda de inocência, exatamente o momento em que ela se sentiu dona do mundo e segura o bastante para pegar algo que não era seu.

A minha leitura foi satisfatória e agradável. No decorrer da primeira leitura senti adrenalina, tensão e, ao mesmo tempo, pesar junto com a narradora. Um pesar por saber que uma garota havia se rendido aos atos criminosos e que a rosa e a pitanga poderia ser apenas o começo. Mas ao finalizá-la pela segunda vez consegui sentir toda a carga emocional que a autora pretendia. Uma leitura que abre os olhos para as coisas mais simples e nos faz debater sobre caráter, sexualidade e inocência.


Clarice quebra padrões e surpreende com sua ousadia na época. Em uma década em que as mulheres eram silenciadas e influenciadas por textos românticos e clichês, a autora mostrou o seu potencial e provou que mulheres também sabiam escrever textos profundos e recheados de significados, cravando na Literatura Brasileira o seu lugar merecido e prestigiado. Cem Anos de Perdão, assim como suas demais histórias, faz pensar e perceber o quanto ainda é difícil dentro da sociedade falar sobre a sexualidade feminina, algo que ainda é considerado absurdo para muitas pessoas. Um assunto que deveria estar mais em pauta na atualidade e nos ensinamentos habituais das nossas meninas, mostrado como algo simples e normal.


Você poderá encontrar o conto Cem Anos de Perdão nos seguintes livros: em Clarice Lispector – Todos os Contos, publicado em 2016 pela editora Rocco; e em Felicidade Clandestina, de 1971, também da mesma editora.

Nunca ninguém soube. Não me arrependo: ladrão de rosas e de pitangas tem 100 anos de perdão. As pitangas, por exemplo, são elas mesmas que pedem para ser colhidas, em vez de amadurecer e morrer no galho, virgens.”


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