Literatura

#Clarice-se: Os Desastres de Sofia

Um pouco sobre o conto:
Ao saber da morte de um professor que há muito lhe mudou a vida, a narradora começa a relembrar o passado e, principalmente, os momentos que vivenciou no período em que estudava com o mesmo: cenas em que a menina o atormentava e o desafiava; pensamentos que expressavam o amor pelo homem mais velho; e as dúvidas de uma criança perante ao primeiro amor. Com essas lembranças fica explícito a relação transtornada entre a menina e o professor: os atritos de uma convivência conflituosa à base de malcriações. De um lado as implicâncias da aluna; do outro a reação impaciente do homem. 


Porém em uma aula quando é exigido a tarefa de reescrever uma redação, a qual tem como moral da história a mensagem de que o trabalho árduo é o único meio de se alcançar a fortuna, o professor é surpreendido com a resposta em forma de texto da narradora. Uma visão que tirou o próprio educador da zona de conforto e, ao mesmo tempo, o deixou maravilhado com tal pensamento. Por conta disso, ele toma a iniciativa e indaga a aluna enquanto estão as sós na sala de aula, fazendo-a perceber que enfim havia o conquistado, e isso a deixou perplexa e insegura. Os papéis são invertidos: a aluna, cheia de sentimentos e imaginação, passa a ser a transmissora do saber, mesmo que inconscientemente; e o professor se torna o aprendiz da pequena jovem mestre.


Com narração em 1º pessoa, somos levados aos devaneios da narradora através de muita saudade e nostalgia. Há uma abordagem sobre o professor exaltando muita admiração e, às vezes, até mesmo com muita paixão, demonstrando que a convivência dos dois gerou algo além de apenas conhecimento, mas também um despertar de felicidade em ambos. É a partir das memórias que geramos conhecimento sobre a vida da narradora e sobre como, ainda sendo uma criança, conseguiu fazer um adulto sentir a felicidade plena apenas com uma ação inesperada.


É perceptível que a relação aluno-professor não transpassava além da ética e educação, mas também é fácil de se perceber que no fundo os dois precisavam um do outro, ao menos de uma forma silenciosa e sem transparência. Essa necessidade de se ter alguém fica explícito no último ato entre os dois: quando finalmente o educador vê na menina quem ela realmente é, sem travessuras e sem resmungões. Quando o educador percebe que a aluna é alguém com grande potencial e cheia de sentimentos.

“Não o amava como a mulher que eu seria um dia, amava-o como uma criança que tenta desastradamente proteger um adulto, com a cólera de quem ainda não foi covarde e vê um homem forte de ombros tão curvos.”


O que extrai da história:
Mais do que uma história propriamente dita de amor impossível ou inalcançável, o conto trata-se de auto conhecimento e amor próprio, e foi exatamente isso que extrai ao terminar a leitura. Mesmo que ao final do texto a narradora revele que é o real motivo que despertou o amor no professor, como se a partir daquele momento o homem estivesse finalmente apto para amar alguém, na minha cabeça ficou a ideia contrária. Na verdade, para mim, quem recebeu esperança e amor foi a própria menina, que até então não havia presenciado esse sentimento com outras pessoas, afinal o pai trabalhava na maior parte do tempo e a mãe já havia falecido.


Eu vi na narradora uma criança que precisava de cuidados, amor e atenção. E era isso que buscava quando tentava chatear ou chamar a atenção do professor: ansiava por um pingo que fosse de afeição. Por isso quando foi “descoberta” e notada pelo educador a primeira reação foi o medo. Medo por ter sido notada; medo por ter sentido pela primeira vez o amor exalando de outra pessoa para si; medo por ter chamado atenção demais e agora ser o centro de algo; medo por conseguir ser amada por alguém.


Aos meus olhos havia muita solidão e falta de amor próprio na menina, e aí está a chave para o começo das travessuras: a maneira que encontrou de demonstrar o seu amor, já que nunca havia tido contato com gestos de afeições antes. No finalzinho do conto quando é dito sobre o sorriso compartilhado pelo professor, um sorriso logo após de elogiá-la, percebe-se que é um gesto único e inusitado. Aparentemente é como se pela primeira vez a narradora tivesse consciência de que é alguém. E além disso, de que é um tesouro e alguém apta a ser amada, tanto por ela mesma como também pelo próximo.


A leitura me surpreendeu e deixou um gostinho de acolhimento em mim. Sendo mais longo do que os habituais, a leitura pode parecer travada ou cansativa em certos momentos, mas a mensagem que se fixa nos leitores faz com que todo o tempo e certas dificuldades tenham valido a pena. É uma história bonita com os toques certeiros de reflexão, especiarias marcantes de Clarice.

Você poderá encontrar o conto Os desastres de Sofia nos seguintes livros: em Clarice Lispector – Todos os Contos, publicado em 2016 pela editora Rocco; e em Felicidade Clandestina, de 1971, também da mesma editora.

“E foi assim que no grande parque do colégio lentamente comecei a aprender a ser amada, suportando o sacrifício de não merecer, apenas para suavizar a dor de quem não ama.”



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8 thoughts on “#Clarice-se: Os Desastres de Sofia”

    1. Sim, os textos dela, nem que sejam nos menores detalhes, sempre trazer algo para se refletir ou uma mensagem para se absorver. Acho importante que cada leitor conheça-a pelo menos uma vez na vida, pois caso goste poderá abrir os olhos para um mundo novo da Literatura.

  1. Clarice Lispector, foi uma das escritoras que na minha infância tive muito contato com os seus livros e sobre o amor. É engraçado que já que uma das minhas paixões amava ler coisas escrita por Clarie, não tem como não venerar a obra dessa excelente autora. Você levantou pontos bastante interessante das coisas que podemos extrair do que ela tentou nos passar sobre essa história.

    1. Que legal, Jeferson! Nunca pensei em uma criança lendo Clarice, mas às vezes a obra não precisa ser "simples" para nos cativar, né? Basta nos deixar admirados e cativados.
      Obrigada pelos elogios! Queria eu ter lido Clarice quando mais nova, quem sabe eu teria pego o gosto pela leitura ainda criança.

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