Literatura

Resenha: “Menina Má” – William March

William March publicou Menina Má pela primeira vez em 1954, um terror psicológico que criou alarme e pânico no público que consumiu a obra. Por se tratar de um assunto não convencional e muito menos esperado, principalmente para a época, a história recebeu a fama de ser polêmico, violento e assustador. Apesar disso, a obra recebeu um grande carinho e admiração dos leitores, ganhando assim uma adaptação para os palcos do teatro e, posteriormente, para as telas de cinema (filme traduzido como A Tara Maldita), onde consistiu com o mesmo elenco o qual encenou a peça.


Há muito o que se diz sobre a semelhança entre a vida do autor e alguns aspectos que cercam a obra. Houve uma comparação feita entre a homossexualidade reprimida do escritor, vista pelo próprio como uma “semente ruim” assim como a maldade em Rhoda, como se ambos fossem um fruto podre que caiu longe de uma árvore saudável. Essas características e dualidades são expostas com clareza na breve introdução da edição publicada pela DarkSide Books, uma leitura que agregará a visão do leitor sobre a obra e sendo também uma maneira de conhecer mais profundamente a mente do criador e de sua criação.


Por isso, chega a ser essencial analisar a obra de forma mais profunda e ingeri-la completamente, não apenas superficialmente. A atenção aos detalhes, aos diálogos e aos personagens se faz extremamente importante para chegarmos a uma conclusão sobre o debate principal do livro: a maldade é fruto do meio em que as pessoas vivem, cultural e/ou social, ou é um gene que pode ser passado através da hereditariedade? O meio cria a maldade no ser humano ou isso já vem com ele ao nascer? Sabemos que o bem e o mal acompanha a todos e em diferentes escalas, mas o debate proposto por William acaba se tornando mais singular e fechado, nos fazendo pensar fora de nossa zona de conforto e analisar questões mais profundas da sociedade.

“Será a maldade uma espécie de semente que carregamos dentro de nós, capaz de brotar na mais adorável das crianças?”

Rhoda é uma garotinha de 8 anos que, surpreendentemente e diferente das demais crianças, é independente, consciente de seus atos e tem uma mente adulta e avançada para a sua idade, tendo também um hábito de organização melhor do que os próprios adultos e uma educação que surpreende a todos. Contrapondo essas características, a garota também é manipuladora, calculista, ambiciosa, narcisista e uma ótima contadora de mentiras, enganando e conquistando a qualquer um com seu sorriso simpático e sua reverência muito bem arquitetada.

Christine Penmark vive para cuidar da filha e do marido. Como o amado passa grandes períodos fora de casa devido ao emprego, Christine e Rhoda convivem praticamente sozinhas na maior parte do tempo, tendo apenas uma a outra para se agarrar e a constante visita da sra. Monica Breedlove para preencher os dias mais solitários e monótonos.

Como um costume anual da Escola Primária Fern, o primeiro sábado do mês de junho é dedicado para o evento de um piquenique. Rhoda, sendo uma das alunas, é levada pela mãe para comparecer ao passeio escolar e passar uma tarde ao lado dos colegas. Mas infelizmente uma tragédia ocorre: Claude Daigle, um dos alunos que estava no passeio, é encontrado morto no cais, local que havia sido proibido de ser ultrapassado pelas crianças.


Pode parecer coincidência (ou paranoia), mas Claude Daigle há alguns dias havia ganhado uma medalha como prêmio por ter a melhor caligrafia da escola, um campeonato também anual da Escola Primária Fern, justamente o prêmio por qual Rhoda treinava com tanto afinco e tinha tanta certeza de que seria seu. Além dessa pequena coincidência, um policial afirma ter visto a garota sair do cais horas antes do pobre menino ser encontrado morto e a sra. Fern diz ter presenciado investidas agressivas por parte de Rhoda contra o colega. Então a pergunta que martela na cabeça do leitor e também de Christine é: será que Rhoda tem algo a ver com a morte de Daigle? Uma criança meiga, carinhosa e educada em um ambiente nada hostil, seria capaz de ter culpa na morte de um garotinho?

Embora Menina Má seja narrado em 3º pessoa, é perceptível o papel ativo do narrador, o qual julga as ações e caráter dos personagens. A história não é linear, havendo  assim capítulos intercalados com lembranças, um artifício utilizado para encaixar o leitor em acontecimentos do passado. Mesmo que o suspense envolvendo a morte de Daigle e a maldade impregnada em Rhoda sejam os principais focos da história, também há um mistério sobre a infância desconhecida de Christine, que será revelada a personagem e ao leitor ao mesmo tempo.


É importante citar que o pai de Rhoda não tem um papel frequente e significativo nos acontecimentos da história. Estando trabalhando e sem comunicação constante com a família, o cargo para tomar decisões e enfrentar os problemas ficam apenas para Christine, que tenta descobrir o início disso tudo. Há alguns personagens masculinos presentes e que ajudarão no rumo da história, porém, ao meu ver, não são explorados da mesma maneira que acontecia na maioria das obras antigas, havendo assim uma ausência de masculinidade e da paternidade. Acredito que isso seja intencional, sendo prioridade do autor explorar as personagens femininas e deixar os homens como secundários.


E talvez esse seja um dos pontos que mais me fisgou durante a leitura: o desenvolvimento das personagens femininas. Christine tem um grande crescimento ao longo da história e isso se torna importantíssimo para a construção geral da personagem, principalmente para arcar com fortes decisões e aceitações internas. Monica é uma mulher a frente de seu tempo: é feminista, a procura da igualdade de gênero e não tem “papas na língua”. Rhoda também é cheia de personalidade, o que traz um leque diverso para explorar e discutir.


Para comentar ainda mais sobre isso e outros aspectos da história criada por William March, essa semana haverá três posts com temática sobre Menina Má. Na quarta-feira sairá a minha opinião sobre a adaptação cinematográfica e na sexta-feira terá um texto sobre as personagens femininas criadas pelo autor. Acompanhe e saiba ainda mais como essa obra influenciou o gênero de terror e outras mídias.

“Os adjetivos mais usados por todos ao falar de sua filha eram “singular”, “modesta” ou “tradicional”; e a Sra. Penmark, de pé no umbral, sorriu, concordando e imaginando de onde a menina poderia ter herdado sua compostura, seu asseio, sua autossuficiência fleumática.”



Os meus sentimentos (e aflições) por Rhoda e Christine
Desde o lançamento da obra pela DarkSide Books as críticas são em sua maioria muito positivas e cheias de entusiasmo e indagações, plantando assim desde dois anos atrás uma leve curiosidade em mim. Mesmo sabendo da adaptação preferi primeiro ler o livro e só depois assisti-la, pois assim não deixaria o filme moldar a minha opinião ou alterá-la de alguma forma.


Admito que estava animada para conhecer Rhoda e seu “probleminha” relacionado a maldade, mas não esperava que, além da criança, as personagens iriam me surpreender tanto e serem tão bem construídas. William March desenvolve de maneira incrível a personagem Christine: aborda um começo, meio e fim; evolui em questões emocionais e pessoais; constrói uma mente que se molda ao decorrer da história e se torna alguém totalmente diferente daquela do início. Mãe e filha tem o lugar de protagonistas e acredito que por isso o autor as construiu de maneira impecável e real. 


Até mais ou menos a metade do livro a minha leitura não fluiu. Mesmo que eu estivesse gostando da história e das personagens, não conseguia me concentrar por muito tempo, fazendo assim com que eu lesse poucos capítulos ao dia. Mas ao chegar nas revelações  da trama a leitura ficou cada vez mais apreensiva e intensa, e eu não queria largar o livro em momento nenhum. A leitura fluiu tão rápido que ao ler a última linha não consegui acreditar que aquele já era o fim, pois eu precisava saber o que iria acontecer após as decisões de Christine. O final chega a ser significativa por conta de uma certa frase dita, algo simbólico e acolhedor, mas que aos olhos do leitor é assustador e irônico.


A escrita do William é diferente das demais, há algo nela que fez o narrador parecer um personagem convicto e observador, alguém que está acompanhando e opinando conosco. Alguém que também percebe que nada de bom poderá ser extraído daquelas pessoas. E acima disso, o narrador confirma os pensamentos do leitor e o força a esperar o pior de cada personagem. Sem salvação, sem piedade. Uma característica que não tenho contato com frequência em outros livros e que despertou uma experiência positiva em mim.


A história foi me surpreendendo de acordo com o seu avanço e suas revelações. A indagação que o autor deixa na mente do leitor é excepcional e faz com que todos nós pensemos um pouco mais sobre de onde vem a maldade em cada ser humano e o que faz de nós uma pessoa ruim. Seriam nossos atos, nossos antecessores ou nosso convívio pessoal?


Conhecer Rhoda me trouxe uma nova perspectiva de personagem e personalidade. Por mais que a odiasse, minha experiência de leitura foi extremamente positiva. Adorei ter esse contato com a mente do autor, conhecer a sua vida pessoal e obra. Uma recomendação mais do que obrigatória para os fãs de suspense e terror e também para aqueles que querem ter uma leitura que traga indagações permanentes e latentes, te deixe pensativo e observador. Será uma leitura que te moldará em certos aspectos e opiniões e lhe mostrará um mal genuíno e natural. Recomendo que conheçam Rhoda e Christine e tirem suas próprias conclusões sobre o assunto. Mas lembrem-se que o mal vive dentro de cada um de nós, basta decidirmos se queremos libertá-lo ou não.


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