Literatura

Resenha: “Guerra Azul” – Clóvis M. Fajardo

Após ocorrer o Grande Apagão, um acontecimento histórico que mudou o rumo da sociedade, São Paulo e seus habitantes não foram mais os mesmos. Vivendo em uma cidade sem eletricidade, água e comida, a população foi dividida em duas castas: os fugitivos, aqueles que decidiram continuar em sua cidade mesmo com as adversidades e dificuldades; e os “chipados”, que são as pessoas que renderam-se ao trabalho escravo para o governo em troca de alimento e moradia, tendo ainda uma espécie de tatuagem no braço por onde são constantemente monitorizados.


O ano é 2065. Toda a tecnologia, evolução e ciência deram espaço para o instinto de sobrevivência e mortes causadas pela falta de água. Ester, uma garota de 15 anos, vive com o Povo da Areia, uma tribo que domina um local chamado Volume Morto. Cansada em esperar pela volta do pai, que após ir buscar mantimentos com os Lagartos não voltou mais, a garota tem um grande desejo em desbravar as areias que a cercam e procurar um lugar melhor para o seu povo habitar. 


Embora nenhuma mulher de sua tribo tenha saído dali sozinha (ou até mesmo acompanhada), Ester quer ser a primeira a se aventurar ao lado dos Lagartos, homens designados para buscar mantimentos nas Ruínas, e com isso encontrar sua liberdade e voz tão desejadas e ainda trazer o seu pai de volta para casa. Entretanto essa decisão não é vista com bons olhos pelas pessoas de sua convivência, fazendo com que duas coisas a impeçam de seguir seu sonho: a falta de apoio por parte de sua tribo de pensamento totalmente machista; e o fato de que está prometida para se casar com Daniel, um jovem odiável que a molestou quando criança.

Com narração em 3º pessoa, essa distopia ambientada em solo brasileiro não traz uma fantasia tão distante assim. Abordando o assunto por volta da falta de água, agora denominada como o Ouro Azul, o mundo distópico que lemos não parece inalcançável, pelo contrário, assusta por ser plausível demais, e isso dá medo. Aqui há uma humanidade que mata para sobreviver e grupos que se veem como inimigos perante ao perigo e o medo de ter que dividir o pouco de água e comida que é despejado pela ONU periodicamente.


Nessa história há ódio, ressentimento e vingança. Os Filhos da Seca, tribo inimiga do Povo da Areia, são comandados pelo Grande Irmão, líder sanguinário que faz de tudo para garantir a sua sobrevivência. Nesse mundo só há líderes e e subordinados. Não há religião, fé e nem crença. Ser cristão já não faz parte dessa realidade. Porém, contrapondo essa ideia de abandono, há Eliseu, o único que ainda é religioso e crê em um Deus bondoso e amado. Sem família, o homem faz a promessa de cuidar de Ester e não deixar que nada a aconteça. Como cuidar de um filho novamente.

“Aprendi que só podemos mudar o mundo se mudarmos a nós mesmos. Essa é a diferença.”



Personagens femininas escritas por homens dão certo?
A resposta para essa pergunta é sim, e isso é exposto com clareza em Guerra Azul. Não vou dizer que as criações são livres de falhas, pois não são. Devo admitir que certos pontos das personagens femininas nessa história me incomodaram, entretanto há outros que enaltecem-as e as deixam vulneráveis ao mesmo tempo, uma forma muito correta de transformar a personagem em uma mulher real, gente como a gente. Com falhas, choros, dramas e momentos de raiva. 


Ester, por exemplo, é apenas uma adolescente que, apesar de não conhecer o velho mundo, quer desvendar os mistérios do mundo e conhecê-lo, mesmo que só reste areia e calor para se ter contato. Uma garota que passou por momentos difíceis, como a morte da mãe ao nascer, o desaparecimento do pai e um abuso sofrido quando criança (que deixou grandes sequelas psicologicamente), mas que mesmo assim ainda deseja encontrar a felicidade para si e para seu povo, encontrar uma maneira de viverem melhor e em paz, harmonia, sem mais mortes. 


Por mais que há momentos em que a personagem tenha me tirado do sério, acredito que todas essas cenas mais dramáticas façam sentido, já que ela tem apenas 15 anos. Apesar do mundo estar do jeito que está, virado ao avesso, Ester ainda não é adulta e age como a sua idade manda. Por isso há momentos em que ela vai fazer de um caso pequeno um grande drama, e isso é absolutamente normal. Algo que me agradou bem mais após a finalização da leitura quando finalmente pude pensar sobre isso sem querer tratá-la como adulta.


Mas não é somente de Ester que a história é construída. É importante citar a presença forte e extraordinária de Corinne e Morgana, duas mulheres que, mesmo opostas, têm muito em comum. As duas me conquistaram bem mais do que a protagonista, mas sem tirar o valor da mesma. Corinne faz parte dos Filhos da Seca, mas é uma Imaculada, e por isso tem um posto especial no grupo de combate da tribo. Ela chuta, bate e atira, indo de encontro aos ideais que acha apropriado e sempre seguindo o seu coração. Uma personagem extremamente poderosa, carismática e simples de coração. Já Morgana, membro da tribo dos Invisíveis, além de ser a única mulher de sua tribo que dirige uma moto é também o sinônimo de independência e girl power. A mulher segue o caminho que acha correto e não fica parada quando o assunto é proteger os amigos e acabar com os inimigos. Digo que quero ser como ela quando crescer e não estou sendo nenhum pouco equivocada com isso.


Eu senti o feminismo nas entrelinhas e de maneira muito bem colocada, principalmente por se contrastar com o machismo enraizado no Povo da Areia e mostrar o posicionamento diversificado da mulher dentro de cada tribo. Porém quanto a parte do abuso, eu não sei dizer com propriedade se foi algo bem construído e estruturado. Acredito que a base tenha sido boa e expor esse assunto tenha sido necessário, mas poderia ter sido abordado de maneira ainda mais profunda. Mesmo que fique explícito as sequelas que isso gerou, há momentos em que o assunto é citado de um jeito que me incomodou. Talvez isso seja por conta do excessivo pensamento de estupro em vários personagens. Mesmo que faça sentido com o ambiente e o mundo meio animalesco, isso me deixou desconfortável.

“A vida sempre foi dura como a terra aos seus pés, mas Ester era mais dura ainda.”



Mas, afinal, o que eu achei dessa distopia nacional?
Por mais que eu já esperasse que fosse me agradar, por conta do teor da história, admito que me surpreendi ainda mais. Tendo uma mistura de Mad Max com O Livro de Eli (dois filmes que eu adoro!), o enredo traz uma atmosfera que deixa o leitor angustiado, com sede, incomodado. Sendo emoções que mesclam perfeitamente com a história, fazendo com que a distopia se torne ainda mais real e presente.


A criação dos personagens também contribuem para o clima de tensão e de falta de humanidade. Vemos em cada personagem uma característica própria, porém, em sua maioria, fruto do ambiente em que vivem, um ambiente caótico e extremamente enlouquecedor. As personagens femininas mais presentes, como disse mais acima, são bem construídas e trazem um ótimo exemplo de poder feminino. Sempre querendo mudar a visão ao seu redor e tomando atitudes que a favoreça, mas que também tragam esperança para seu povo. Cada uma com sua ideologia, mas no geral são todas importantes e necessárias para a construção da história. 


O homens também são bem construídos, mas diferente das mulheres muitos deles causa repulsa e raiva, por conta das atitudes machistas, abusadoras e que desmerecem o sexo oposto. Claro que nem todos são assim. Outros irão nos encantar e fazer com que torçamos para o seu bem. E isso é interessante, pois fica claro o distanciamento entre os dois tipos e como a criação dentro da família (ou da própria tribo) influenciou cada um.


A escrita do autor é fluida, tornando a leitura rápida e suave, mas incômoda (no bom sentido) em certas partes. Eu sempre digo por aqui que tenho um ritmo lento de leitura, demorando até mesmo uma semana inteira para ler livros relativamente curtos. Não sei se participar de uma maratona contribuiu para a leitura ser mais rápida, mas o li em questão de três à quatro dias, um feito que me surpreendeu. A história contribuiu para isso, já que me indagou desde o começo e foi me deixando mais curiosa a cada página. 


O final me deixou com um gostinho de quero mais e com uma espera desenfreada pela continuação. Quero muito ver o quanto a Ester ainda pode crescer e como ela lidará com os novos objetivos à sua frente. Também estou ansiosa para acompanhar o destino dos Invisíveis, que me conquistaram logo de cara com seu estilo de motoqueiro e suas motos incrivelmente lindas. Ainda há muita coisa a ser explorada nesse mundo distópico e espero conferir cada detalhe futuramente.

É perceptível o quanto gostei da leitura, mas infelizmente tive que retirar uma estrela por conta de algo que me incomodou todos os dias: os erros de revisão. Conversei com o autor sobre isso e o mesmo me explicou que a revisão foi feita às pressas já que a data da Bienal se aproxima, e me garantiu que falará com a editora sobre isso. Pois além dos erros de revisão, alguns nomes também foram trocados, algo que me causou como um grande desleixo de quem revisou. Algumas repetições incessantes também me incomodaram, já que não era preciso repetir a mesma coisa várias vezes. Outro ponto que poderia ter sido reajustado com uma simples revisão.


Mas, apesar desse contratempo, acredito que Guerra Azul é uma ótima indicação para os fãs de distopias, ficção científicas e histórias surpreendentes. Além, é claro, de valorizar a literatura nacional e abrir mais espaço para autores do nosso país. Há muitos talentos que precisam ser revelados e com a nossa ajuda isso será cada vez mais possível. Clóvis escreve e articula as ideias bem e sabe manter o leitor concentrado nas páginas, fazendo com que a pausa entre a leitura não seja uma opção. Conquista os leitores e os deixam curiosos para os próximos livros. Uma ótima indicação para sair da zona de conforto e embarcar em uma calorenta e agonizante aventura.

Um comunicado importante: por conta da abordagem de assuntos mais pesados e que podem te deixar desconfortável e mal, como abuso físico, psicológico e sexual, indico que só leia o livro se sentir apto a ter esse tipo de contato dentro da obra. Deixo avisado que poderá conter gatilhos e que, por isso, não é uma leitura recomendado para todos. Esteja ciente disso.

O Grande Irmão pousando à frente de Guerra Azul


O autor comparecerá a Bienal de São Paulo no dia 08 de agosto, às 15:30, no estande a110 da Editora Autografia. Convido todos vocês à comparecem por lá e prestigiarem o trabalho do Clóvis. E ainda, de quebra, adquirir Guerra Azul e trazer para casa com um autógrafo.


Caso não vá na Bienal nesse dia, aproveite para comprar o livro em pré-venda no site da editora Autografia (compre aqui). E adicione o autor à sua estante no Skoob (clicando aqui).




Faça sua compra na Amazon através do nosso link (clique aqui) e ajude o blog a manter-se ativo. Sem taxas ou inclusão de valores, você estará nos ajudando a continuar trazendo conteúdo.

Me acompanhe nas redes sociais:

18 thoughts on “Resenha: “Guerra Azul” – Clóvis M. Fajardo”

  1. eu amo distopias e mundos pós apocalipticos, sem duvida são extremamente envolventes
    nao sabia desse livro, talvez por ser brasileiro, mas os escritores nacionais estão me surpreendendo cada vez mais com tanta crianção maravilhosa

    1. Esse além de ser distópico e pós-apocalíptico, também tem uma "pegada" bem real, pois é plausível e fácil de acontecer nos dias atuais. Talvez isso seja o que dê mais medo e apreensão durante a leitura. Se gosta desses temas, indico que dê uma chance para esse livro.

  2. Olá!

    Faz muito tempo que não leio uma distopia(na verdade, faz muito tempo que não leio um livro finalizado mesmo rs), e acredito que não tenha lido uma distopia nacional, então peguei a dica devido a sua resenha que me fez ficar intrigada com o livro, de fato.

    Acho que vou gostar da Ester e também concordo com você quanto estarmos passando por situações similares à abordadas no livro. Infelizmente, é uma verdade.

    Beijos,
    Blog Diversamente.

    1. Eu já havia lido uma distopia nacional, Incompletos, caso queira procurá-lo também (inclusive tem resenha por aqui). A leitura desse livro é bem fluida e por conta dos acontecimentos você acaba por não querer desgrudar dele. Acho que quando você o pegar para ler será uma leitura agradável e que ao mesmo tempo irá te tirar da zona de conforto. Elementos que quando bem mesclados trazem uma nova atmosfera para a história.
      Espero que você goste da Ester e das outras mulheres também!

  3. Oiieee

    Meu Deus, que dica linda! Adorei ler sobre o livro e achei a premissa super interesante, amo distopias e nunca li nenhuma ambientada no Brasil, fiquei super curiosa em conferir. Além disso, quando vc citou O Livro de Eli me ganhou completamente, amo demais aquele filme! Com certeza vou anotar esse livro na minha lista pra conferir assim que der.

    Beijos

    http://www.derepentenoultimolivro.com

  4. Caramba, que premissa mais interessante! Eu ainda não conhecia o livro e gostei da proposta. Geralmente eu não curto distopias, mas quando alguma me desperta interesse como esse livro fez eu procuro ler porque acho que vou gostar.

    1. Eu também não sou muito fã de distopias, confesso. Acredito que só li duas até hoje e, ainda bem, gostei de ambas. Mas quando a história lhe chama aquela atenção, não dá para correr para longe, né? O jeito é lê-la e desfrutá-la da melhor maneira possível.

  5. Oi, tudo bem?
    Ainda não conhecia esse livro, mas super animei com a premissa dele. Estou numa vibe de ler distopias e fiquei muito contente por essa ter um teor mais 'real', por assim dizer. Também animei muito com a narrativa do autor. Acho que é uma leitura que vai me agradar bastante e vou anotar a dica, sem dúvidas.
    Beijos

    1. Oi, Bruna! Que bom saber que se interessou!
      Por mais que a narrativa seja uma distopia, é meio que impossível não ligá-la ao nosso país atualmente. Talvez essa seja uma das características mais interessantes do livro: a maneira que o autor mesclou ficção com não-ficção. Espero que a leitura lhe agrade! Depois me diz o que achou. 🙂

  6. Gostei da distopia. Não conhecia o autor e se eu estiver pela bienal nesse dia, tentarei pegar um exemplar e já autografar. Faz tempo que não leio nada desse gênero e fiquei curiosa para saber como esse autor trabalhou a personagem feminina ..

    Sai da Minha Lente

  7. Olá,

    Confesso que não tinha conhecimento desse livro, no entanto você falou tão bem e aponto pontos muito positivos do livro, que fiquei curiosa para conhecer mais desse universo que parece ser tão interessante, além disso acho que nunca li nenhuma distópia nacional.

    Beijos,
    oculoselivrosblog.blogspot.com.br/

    1. Vai fundo, então! Eu já havia lido outra distopia nacional e estou gostando cada vez mais de conhecer obras baseada em nosso país. Mesmo não gostando muito do gênero, é ótimo conhecer essas histórias e seus autores! Indico que se aventure e aproveite o máximo da experiência.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *